Reportagens

O Estado tem de ser mais interventivo

Falámos com José Gaspar, presidente do Conselho de Administração da FlorestGal, sobre a floresta nacional.

Que desafios advêm do facto de o Estado ter uma percentagem mínima de terrenos florestais, num país em que um terço do território é floresta?

A questão de o Estado ser um proprietário de reduzida dimensão no contexto do território florestal é limitante do ponto de vista da atuação política. Por um lado, a sua capacidade de agir está limitada pelo facto de ter de dialogar com um conjunto muito grande de atores para conseguir implementar determinadas medidas, programas ou modelos. Por outro, não lhe permite dar o exemplo ou criar soluções demonstradoras.

O significa, exatamente, “dar o exemplo”?

Quando o Estado quer implementar políticas que regulam algumas atividades ou formas de atuação, pode fazê-lo condicionado apenas os privados, ou pode fazê-lo pelo exemplo, através de áreas próprias nas quais põe em prática essas políticas. E é importantíssimo que esta última parte aconteça, para se poder ter uma atuação consequente, em vez de passar a perceção de que se está a fazer legislação só para os privados cumprirem. Acho muito relevante que o Estado tenha uma posição mais presente, indo gradualmente crescendo em área.

Como é que o Estado pode intervir na criação de uma melhor floresta em Portugal?

Ao ter uma intervenção maior ao nível da propriedade, ou seja, ao ter mais área sob sua alçada, e mais diversificada em termos de tipologia, indo além das zonas de conservação, o Estado pode ajudar a dinamizar a economia privada, criando áreas de negócio que hoje são muito incipientes ou estão pouco organizadas. E pode criá-las em parceria com os privados – não vejo problema nenhum, por exemplo, em que o Estado tenha um papel mais associado à produção, e que depois a transformação e a criação de mais-valias esteja associada aos privados. Esta cooperação entre setor público e privado é salutar e essencial para dinamizar a economia, criar empregos e trazer valor para os proprietários. Para que isso aconteça, o Estado tem de ser mais interventivo e disponibilizar-se para ser um verdadeiro ator na floresta, para produzir, para estar no mercado.

“A capacidade de o Estado agir está limitada pelo facto de ter de dialogar com um conjunto muito grande de atores.”

De alguma forma, é também esse o papel da FlorestGal, enquanto empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal?

A FlorestGal concentra-se em melhorar a gestão do seu património, intervir no património de terceiros, através de contratos de gestão com outros proprietários, e, sim, tem também o desígnio de aumentar a área de terrenos em posse do Estado, nomeadamente em zonas de conservação. Nos últimos dois anos e meio fizemos a aquisição de quase 1.400 hectares espalhados pela Serra de S. Mamede, Serra da Arada, Parque Natural do Tejo Internacional e Parque Natural da Serra da Estrela. Depois, tentamos melhorar a gestão, a forma como vão sendo intervencionadas. São áreas de conservação, mas, em alguns casos, conseguimos conciliar, também, objetivos de produção.

Como encara essa compatibilização de objetivos?

Pessoalmente, nunca gostei desta dicotomia entre produção e conservação, porque considero que as duas funções são perfeitamente possíveis de conciliar, ou seja, podemos obter rendimentos e ter estratégias de desenvolvimento interessantes ao nível da conservação dos ecossistemas e dos recursos. Enquanto técnico, não concebo que uma intervenção, mesmo feita com objetivos de produção, não tenha, na sua génese, preocupações do ponto de vista da conservação.

Até porque, numa lógica de gestão privada, só obtendo rendimento da produção é possível investir na conservação.

Correto. E acontece o mesmo na FlorestGal, porque somos uma empresa pública, mas não dependemos do Orçamento de Estado – funcionamos com o que conseguimos gerar. Por isso, temos de gerir muito bem aquilo que alocamos às diferentes atividades, para manter a empresa viável. É nesse sentido, por exemplo, que arrendamos áreas do nosso património a terceiros. Primeiro, porque temos uma estrutura pequena e não nos conseguimos especializar em tudo, mas também porque precisamos de eliminar um problema que é característico das atividades florestais, que são os períodos de carência entre o investimento e a realização da receita. Ou seja, se eu tenho um investimento que é feito em determinado momento, e só ao fim de dez anos é que vou ter receita, tenho de ter atividades que me permitam obter rendimentos suficientes para manter as operações e os investimentos na gestão florestal sustentável.

“Nunca gostei da dicotomia entre produção e conservação, porque considero que as duas funções são perfeitamente possíveis de conciliar.”

Na floresta nacional, a fragmentação da propriedade dificulta essa gestão sustentável…

Nós temos na cabeça um modelo de gestão em escala, que nos permite fazer determinadas operações de outra maneira, e custa-nos passar desse modelo para um modelo mais complexo, em que as propriedades são mais pequenas. Mas essa é a realidade e temos de trabalhar com ela. Portanto, é no cenário de propriedade fragmentada que temos de conceber a forma de atuar para resolver o problema. As Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) são, talvez, o primeiro grande ensaio onde isso vai acontecer: vamos ter de contratualizar a gestão com os proprietários individualmente, respeitando as parcelas que eles têm, sejam de que dimensão forem. Na FlorestGal, gerimos três projetos de AIGP, e eu estou muito esperançado que isto funcione – talvez não tão rápido como politicamente se gostaria, mas, se o processo for bem feito, e em concertação com os proprietários, correspondendo também àquilo que eles querem e que estão disponíveis para fazer, creio que podemos, em muitos casos pela primeira vez, levar gestão a estas áreas.

E consegue-se chegar à fala com todos os proprietários?

Essa é a grande dificuldade, criarmos os mecanismos para trazermos os proprietários ausentes para estes processos. Dou um exemplo: a AIGP da Pampilhosa, que nós gerimos, tem cerca de 4.000 hectares, distribuídos por cerca de 1.500 proprietários. Recentemente, fizemos três reuniões com os proprietários, duas localmente e uma em Lisboa – nesta última tivemos o triplo de proprietários presentes. Isto cria uma dificuldade acrescida e exige mais trabalho, mas pode ser feito.

Como vai encaixar neste “puzzle” o recém-criado Banco de Terras, que é gerido pela FlorestGal?

As AIGP/OIGP podem constituir um excelente espaço para testar a exequibilidade destas medidas de política, bem como para operacionalizar e flexibilizar os mecanismos a desenvolver para identificar e disponibilizar os terrenos sem dono conhecido no Banco de Terras. Porque dentro das AIGP vão, muito provavelmente, aparecer áreas nas quais não vamos conseguir identificar os proprietários, pelas mais diversas razões, e podem ser boas oportunidades para testarmos a operacionalização destes modelos.

“A terra é um recurso que nos é disponibilizado para determinado fim. Se não estamos a utilizá-la, temos de a colocar à disposição de quem esteja interessado.”

Que “medidas de política” são essas que referiu?

O Banco de Terras vem permitir a cedência a terceiros de terrenos do Estado ou de entidades públicas, bem como o arrendamento agrícola ou florestal de terrenos sem dono conhecido, contribuindo, assim, para um aumento da oferta de terrenos no mercado, mas também para a dinamização dos mercados de arrendamento agrícola e florestal. Para implementar estas medidas, é necessário produzir ainda regulamentação adicional. No caso da FlorestGal, será necessário criar uma estrutura técnica especializada para desenvolver esta nova área de trabalho, e avaliar com detalhe o modelo de negócio e o seu funcionamento, no atual enquadramento legislativo e funcional.

O Banco de Terras poderá vir a ser um instrumento relevante na questão do minifúndio e da escala?

Sim, pode ter um papel importante. Não será transversal ao país, porque as realidades são muito distintas, mas em alguns locais, onde é muito difícil conseguir identificar os proprietários, será relevante. A terra é um recurso que nos é disponibilizado para determinado fim, e ou estamos a utilizá-la para esse fim ou não estamos. E se não estamos, temos de a colocar á disposição de quem esteja interessado em fazer uso dela.

Artigo publicado originalmente na revista n.º 13, de março de 2024, que pode ler na íntegra e descarregar aqui: https://produtoresflorestais.pt/quero-receber-a-edicao-da-revista-em-papel/