Reportagens

“A sustentabilidade é um princípio florestal há 300 anos”

A Bioeconomia de Base Florestal é crucial para os objetivos de descarbonização da economia. Mas é precisa mais matéria-prima e estabilidade regulatória.

“Na indústria do papel, temos 139 biorrefinarias em toda a Europa – e gosto de dizer que são os laboratórios de inovação do futuro. Estamos a criar novos empregos verdes e fazemos parte da recuperação europeia. Os nossos investimentos vão escalar esta realidade. É a bioeconomia em ação”. Jori Ringman, diretor-geral da CEPI-Confederação Europeia das Indústrias do Papel, foi muito claro na mensagem que deixou na Conferência “Bioeconomia de Base Florestal”, promovida no dia 21 de março pela The Navigator Company e o jornal Expresso: “É fundamental discutir o assunto agora se quisermos atingir as metas de neutralidade climática da UE”.

E foi exatamente isso que aconteceu perante a centena de pessoas que afluiu às instalações do Expresso, em Paço d’Arcos, para participar num momento de discussão que reuniu representantes da academia, de empresas do setor, bem como decisores políticos, em torno de um tema que a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, definiu, na comunicação de abertura por vídeo, como um caminho essencial para os objetivos de neutralidade carbónica.

A ministra defendeu uma aposta neste caminho de “novos materiais, de origem renovável, simples, eficientes e de baixo custo, utilizando tecnologias também amigas do ambiente”. E sublinhou que “estes novos materiais podem ser nossos aliados para alcançar a neutralidade climática, a circularidade, os sistemas de alimentação saudáveis, a sustentabilidade na agricultura e na floresta, nos transportes, na construção, na embalagem e nos aparelhos eletrónicos”.

Jori Ringman, por seu lado, lembrou que a madeira, juntamente com muitas outras formas de celulose, é o material mais abundante na natureza: “A floresta cresce na Europa a um ritmo de 612 milhões de m3 ao ano. É difícil entender números tão grandes, mas este espaço seria grande o suficiente para nele caber toda a população global! E esse é o crescimento florestal de apenas um ano, só na Europa”.

“Sabemos, talvez melhor do que outros, que mesmo os recursos abundantes devem ser geridos de forma sustentável. Sabemo-lo porque a nossa indústria, os nossos investimentos o nosso futuro, dependem totalmente disso. Não é por acaso que os países com uma indústria papeleira forte também têm as melhores florestas da Europa”, referiu.

“De facto, a sustentabilidade é um princípio florestal, cunhado há mais de 300 anos, para orientar os utilizadores da madeira a não ultrapassar o seu crescimento. Praticamos a sustentabilidade há mais de 300 anos, enquanto outros a usam nos últimos 30 anos. Podemos orgulhar-nos do que fazemos – lembrando que sempre podemos melhorar também”, destacou, para adiantar: “Para nós, o futuro é claro: um modelo de bioeconomia circular, renovável e neutra em carbono. Economia que tem o potencial de ser não só menos poluente, mas realmente regenerativa. A velha economia fóssil tem os dias contados”.

Ringman referiu como pré-requisitos para a bioeconomia “novos produtos, mercados e modelos de negócio”, bem como “soluções circulares e eficientes em termos de recursos”, face ao acesso limitado a matérias-primas. O diretor-geral da CEPI destacou ainda que “todos os investimentos na Europa precisarão de um ambiente regulatório estável”, uma vez que “a regulamentação em rápida mudança” que se verifica neste continente se afigura como um travão a mais investimento.

Mais matéria-prima

António Redondo, CEO da The Navigator Company, destacou, por seu lado, os desenvolvimentos concretizados pela empresa no âmbito dos novos bioprodutos a partir da fibra de eucalipto globulus, capazes de substituir os que atualmente são obtidos a partir de matérias-primas fósseis, mas advertiu que para que esta transformação aconteça e a bioeconomia se afirme em Portugal, é precisa mais matéria-prima: “Sem isso, o futuro do atual cluster industrial de pasta e papel ficará seriamente comprometido e não se desenvolverão em Portugal novos clusters industriais de ainda maior valor acrescentado”.

“O aumento de disponibilidade de matéria-prima deverá passar, não só por melhorias claras da produtividade da floresta nacional, para o que é fundamental a recuperação e rejuvenescimento de vastas áreas abandonadas e degradadas; não só pela relocalização, para zonas de maior produtividade, de povoamentos mal localizados; mas também tem de passar por políticas de fomento florestal que potenciem o aumento controlado da área de floresta plantada e bem gerida de eucalipto. Estas áreas, geridas de forma sustentável, para além de garantirem o necessário acréscimo de produtividade, e a resiliência do território, serão ainda geradoras dos denominados serviços do ecossistema”, disse.

O caminho a percorrer pela floresta nacional terá – adiantou o CEO da Navigator – “de incorporar o princípio da livre-escolha e do respeito pela propriedade privada, também no mundo rural. Quero com isto dizer que, aos proprietários florestais, deverá ser reconhecido o direito de escolha sobre o que produzir nas suas propriedades, desde que tais escolhas não criem mais externalidades negativas do que positivas para a sociedade em que se inserem”, destacou António Redondo, para sublinhar: “Pelo contrário, e sempre que essas escolhas impactem a sociedade de forma positiva, como é o caso da produção dos serviços de ecossistema a partir de povoamentos de eucalipto bem geridos, os proprietários rurais deverão ser por esta devidamente remunerados. O que atualmente ainda não acontece.”

“Para que tal possa acontecer, é essencial que o poder político seja mais sensível aos argumentos do conhecimento técnico-científico do que às barreiras ideológicas e aos mitos urbanos na definição das políticas públicas. As restrições absurdas a que as plantações de eucalipto e, portanto, os proprietários rurais, têm vindo a ser sujeitos são um sinal claro da inversão destas prioridades”, concluiu.

A visão da academia

A conferência “Bioeconomia de Base Florestal” contou com duas mesas-redondas, uma subordinada ao tema “Investigação e Desenvolvimento como Motor da Bioeconomia de Base Florestal: avanços e desafios”, juntando representantes da academia, e uma outra, intitulada “A implementação da bioeconomia de base florestal: do laboratório para o mercado”, que reuniu porta-vozes das empresas do setor florestal.

Na primeira, Emídio Gomes, reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, destacou o papel fundamental das empresas do setor florestal neste domínio: “Estamos a assistir a uma revolução profunda na fileira florestal. Este é um dos setores onde a investigação está mais avançada e é exemplar a forma como esse conhecimento é transposto para as empresas.” 

Francisco Gomes da Silva, professor do Instituto Superior de Agronomia, alertou, contudo, para a necessidade de um novo olhar sobre a floresta: “É considerada numa ótica monofocal da descarbonização direta, pelo seu papel de reter carbono. Mas estamos a perder a oportunidade de moldar a floresta de modo que forneça a esta fileira a matéria-prima na quantidade e qualidade necessárias, mantendo e aumentando a sua capacidade de sequestro de carbono e ainda de gerar outros valores para a sociedade, os chamados ‘serviços do ecossistema’”.

Júlia Seixas, pró-reitora da Universidade Nova de Lisboa, referiu, por seu lado, que “o valor do sequestro é muito importante, mas também temos de olhar para o valor dos produtos que saem desta fileira, na medida que vêm substituir produtos de base fóssil.”

A necessidade de um novo olhar sobre as florestas plantadas foi também sublinhada, enfaticamente, por Luís Mira, secretário-geral da CAP – Confederação dos Agricultores de Portugal, alertando para o facto de os produtores florestais, que estão na base da bioeconomia de base florestal, continuarem a ter de enfrentar um enorme preconceito contra uma espécie específica: o eucalipto. “O preconceito tem vindo a piorar. Há um conjunto de equívocos que têm de ser ultrapassados”, considera. “A bioeconomia de base florestal não se encontra bloqueada pela estrutura de minifúndio. Está sim condicionada por políticas públicas equivocadas e por preconceitos ideológicos”, disse.

Mesa-redonda “Investigação e Desenvolvimento como Motor da Bioeconomia de Base Florestal: avanços e desafio

O papel das empresas

“Quase tudo o que obtemos a partir da indústria petrolífera pode ser obtido a partir da indústria florestal”. Paula Pinto, coordenadora de I&D Tecnológica do RAIZ – Instituto de Investigação da Floresta e Papel, resumiu desta forma a temática da segunda mesa-redonda do evento, “A implementação da bioeconomia de base florestal: do laboratório para o mercado”. Assegurando que “a oferta de investigação, desenvolvimento e inovação é determinante para a competitividade da indústria”, a especialista destacou o projeto Inpactus e os resultados que daí saíram, nomeadamente os quatro novos produtos já em comercialização (três na área do papel tissue e um na área do packaging) e a formação qualificada de recursos humanos.

Adelaide Alves, diretora de R&D da Sonae Arauco, referiu que a circularidade é uma lógica que faz parte do modelo de negócio da empresa e que o objetivo “continua a ser o de crescer na incorporação de madeira reciclada”.  Um desafio que exige investimento em tecnologia e que implica repensar toda a cadeia de valor, mas que é imprescindível: “o estilo de vida das pessoas está a mudar, pelo que os produtos que lhes oferecemos têm de mudar também”, disse.

Uma opinião corroborada por Eduardo Soares, administrador executivo e diretor de Inovação e Project Management da Amorim Cork Composites: “Estamos atentos aos sinais dos consumidores, que perspetivam uma mudança e que podem ser uma oportunidade para nós”, afirmou. Até porque, disse, “há todo um mundo por descobrir à volta das aplicações da cortiça”, uma matéria-prima cujo “valor acrescentado que aporta é o motor de tudo”.

“O nosso processo produtivo, em si mesmo, é um exemplo clássico de circularidade”, referiu Gabriel Sousa, diretor de Inovação e Desenvolvimento Tecnológico da Altri, apontando também a contribuição do setor para a descarbonização fóssil. Neste momento, contou, a Altri está a avaliar a possibilidade de entrar diretamente na produção de fibras têxteis, a partir da conversão das pastas de celulose que são o seu negócio core.

José Oliveira, diretor de Vendas, Marketing e Inovação da DS Smith Packaging, aludiu à visão da empresa de redefinir o packaging, com foco na substituição dos plásticos, “através de uma matéria-prima reciclável e sustentável, pelo que utilizamos a fibra de madeira”. A empresa aposta na reciclagem, utilizando fibras recicladas no fabrico do seu papel e reciclando “até 25 vezes”.

Mesa-redonda “A implementação da bioeconomia de base florestal: do laboratório para o mercado”