Reportagens

“Poderíamos produzir o dobro na nossa floresta”

Em entrevista, Francisco Gomes da Silva, professor no ISA e diretor-geral da Agroges, aponta a falta de gestão como um dos problemas da floresta em Portugal

Gomes da Silva

Que importância tem a floresta no nosso dia-a-dia?

Se o “nós” for o país, há uma parte muito significativa neste nosso “eu coletivo” que é floresta. Começa pela importância que os espaços florestais têm na ocupação do território. Segue com o facto de as florestas serem a nossa componente mais eficaz na redução de CO2 da atmosfera. Continua com o elevado impacto das fileiras de base florestal para a nossa economia. E termina com a sua função social, quer na componente do emprego que é gerado por estas atividades – ao nível da floresta de base, na mão de obra que utiliza na gestão dos espaços florestais, e também ao nível das indústrias –, quer enquanto espaço lúdico ou gerador de “bens” que preenchem determinadas necessidades do mundo rural.

Estamos muito ligados à floresta…

Muito. Para além de coisas tão óbvias como a produção de oxigénio e o sequestro de carbono, a floresta é papel, mobiliário, revestimento de paredes e de chão, tintas e diluentes (que utilizam resinas das árvores), perfumaria (que utiliza extratos de plantas), embalagens, produtos alimentares, vinho, roupa, pranchas de surf, até as naves espaciais utilizam alguns materiais derivados da cortiça.  É quase impossível um ser humano em Portugal estar a menos de dois ou três metros da floresta, em qualquer momento da sua vida.

“Porque é que há povoamentos de eucalipto, de montado ou de pinheiro bem geridos? Porque o mercado valoriza e remunera.”


Especificamente, qual o contributo da floresta para a economia nacional?

As três fileiras de base florestal representam uma parte nada negligenciável da nossa economia. Não só pela importância que têm para o Produto Interno Bruto, como também pelos empregos que geram, diretos e indiretos, e porque assenta na floresta uma parte importante daquilo que é o valor de exportações que o país vai conseguindo alcançar. Não de produto florestal puro, na sua maioria, mas sim transformado, no âmbito das três grandes fileiras: pasta de papel, cortiça e transformados da madeira de pinho (mobiliário, painéis derivados de madeira…). Neste caso das exportações, há ainda a particularidade de ser também um setor cujo saldo de balança comercial com o exterior é muito positivo.

E quanto ao impacto social da floresta?

Esta questão social, da relação das pessoas com os espaços florestais, é, do meu ponto de vista, a dimensão que carece da procura de soluções de forma mais marcada. Enquanto que a dimensão económica, de produção de bens, está bastante bem resolvida, na área social é onde o problema existe: o afastamento é uma realidade, e decorre de motivos muito racionais.

As pessoas estão a afastar-se da floresta?

A floresta tem vindo a perder alguma da importância social que tradicionalmente tinha. Os espaços florestais serviam de base às populações rurais para um conjunto de necessidades que, com o passar do tempo, passaram a ser satisfeitas com outros recursos. Por um lado, porque a população rural diminuiu muito, por outro, porque a própria sociedade evoluiu no sentido de que essas necessidades desaparecessem. Houve um conjunto de valores que a floresta deixou de proporcionar, e, como tal, começou a ser menos cuidada. Esta dimensão tradicional mantinha um equilíbrio muito interessante no espaço rural, nomeadamente na gestão do fogo, com o impedimento de acumulação de biomassa.

Mas mesmo que as florestas não ardessem, haveria sempre um conjunto de problemas que passavam pelas restantes manifestações de abandono: um território que tem claramente menos gente, e para o qual não foram ainda encontrados usos alternativos ao anteriores, que tenham algum valor.

“Temos muita área de floresta mal gerida, pouco intervencionada, mas o potencial existe, sem precisarmos de aumentar a área florestal.”

Refere-se à partida das pessoas do campo para a cidade?

Sim, mas é muito fácil para nós, na cidade, criticarmos o abandono do território rural, da floresta. O que não nos podemos esquecer é que quem abandona é quem, na prática, tem de se confrontar com estes problemas, com esta relação entre o custo e o benefício de gerir uma determinada área; quando os benefícios deixam de compensar, começa a fazer-se o menos possível, e, a partir de certo momento, deixa-se de fazer. Portanto, o abandono é, no limite, a atitude mais racional que as populações no meio rural, em determinado momento, tiveram de tomar.

O que podemos fazer?

É possível usar alguns desses exemplos tradicionais e adaptá-los aos tempos modernos, e alguma coisa tem sido feita nesse campo. Por exemplo, o recurso à pastorícia, à produção de mel ou a extração de resina. São atividades importantes porque implicam a presença de pessoas nos espaços. Se, de alguma forma, se conseguir dinamizar uma atividade económica, devolve-se algum valor aos espaços e ajuda-se a “casar” novamente as populações rurais e a floresta. Se se entender que são caminhos interessantes, algumas destas atividades terão de ser apoiadas pelo Estado, porque é muito bonito dizer “vamos lá pôr os pastores a pastar com as cabras e as ovelhas”, mas se isso não for interessante do ponto de vista económico, se o mercado não remunerar devidamente essa atividade, não há pastor que o queira fazer.

O que acontece muitas vezes são as chamadas “falhas de mercado”, isto é, determinadas atividades que têm um valor reconhecido pela sociedade, mas que o mercado não valoriza. Por exemplo, se os pastores forem, de facto, com os animais para estes pastos, estão a dar um contributo muito importante à sociedade, nomeadamente reduzindo a carga de combustível das florestas, mas não existe mercado para esse bem que é a redução da carga de combustível, e, portanto, é o Estado que tem de intervir – se entender que isso é útil -, remunerando, de alguma forma, aquilo que o mercado não faz.

A floresta gerida é um bom exemplo da economia de mercado. Porque é que há povoamentos de eucalipto, de montado ou de pinheiro bem geridos? Porque o mercado valoriza e remunera.

“A visão que a população urbana tem da floresta é de conto de Walt Disney, é a floresta do Bambi. É aquela com os passarinhos a cantar.”


E nas cidades, como é a relação das pessoas com a floresta?

Complicada… As gerações mais novas têm cada vez menos relação com os espaços rurais; já não têm raízes no campo, através de laços familiares, já não vão lá, já não se identificam. E isso torna esta relação é particularmente difícil. Porque, por um lado, os urbanos são cada vez mais e têm muito peso na sociedade, com aquilo que dizem, aquilo que pensam, aquilo que querem para essa mesma sociedade. Por outro, olham para a floresta de uma perspetiva essencialmente lúdica e paisagística, e, portanto, aquilo que dizem que querem da floresta é muito marcado pelo uso que eles próprios lhe dão.

A visão que a população urbana tem da floresta é de conto de Walt Disney, é a floresta do Bambi. É aquela com os passarinhos a cantar, uma temperatura agradável, água a correr, ervas bem cortadinhas no chão. Ora, quem tem esta visão da floresta, nunca foi nunca à floresta. Porque a floresta é um espaço incómodo. Tem moscas, abelhas, formigas, o chão tem picos, os arbustos arranham as pernas. Nada daquilo é uma coisa de conto de fadas.

Portanto, esta visão idílica que se tem da floresta faz com que uma grande parte da sociedade emita opiniões que ganham força, que ecoam e influenciam os decisores políticos e sociais, sobre uma realidade que, primeiro, não compreende, porque não conhece, por causa deste afastamento; e, segundo, pronunciando-se sobre uma coisa que não lhe pertence. Porque a floresta, em Portugal, é privada, o Estado tem apenas 2% da área florestal.

Francisco Gomes da Silva, professor no ISA e diretor-geral da Agroges

Do ponto de vista ambiental, pelo menos, a floresta é tão importante para o campo como para a cidade…

A floresta tem, de facto, esta característica muito interessante da gestão entre carbono e oxigénio. Tem a capacidade não só de sequestrar carbono, como também de manter esse carbono sequestrado, de armazenar. Porque a maior parte dos produtos que nós fazemos a partir da floresta duram no tempo. Por exemplo, quando entramos numa biblioteca antiga, daquelas todas em madeira, chão de madeira, teto de madeira, paredes de madeira, livros a forrar tudo, aquilo é um enorme reservatório de carbono. Estão ali toneladas de CO2 armazenadas durante décadas ou mesmo séculos.

Mas há um conjunto de outras funções ambientais importantes, que podem ser melhor ou pior cumpridas – e este melhor ou pior cumprimento resulta da qualidade da gestão dos espaços florestais. Por exemplo, as florestas têm uma importância enorme na gestão do regime hidrológico, pois são essenciais para permitir uma infiltração da água e para proteger e produzir solo.

E em termos de biodiversidade?

A boa gestão de um espaço florestal é um bom contributo para a biodiversidade, certamente diferente – e não para pior, como muitas vezes se pensa – daquele que ocorreria se entregássemos a natureza ao seu curso. Ao gerir o espaço, nós podemos fazer escolhas. E essa é uma grande vantagem que o ser humano tem: poder pensar, e, com todo o conhecimento acumulado, decidir qual é a biodiversidade que é importante conservar, quais são as espécies, o que é que é importante introduzir, como é que a gestão deve ser conduzida para privilegiar aquilo que é importante desse ponto de vista também. A natureza não faria isso. A natureza poria as espécies em competição umas com as outras, e as mais adaptadas sobreviveriam.

“A evolução da tecnologia e do conhecimento em torno da floresta permite produzir eucalipto, pinheiro, ou outra coisa qualquer, sem pormos em causa valores naturais.”

Como tem sido gerido o potencial da nossa floresta?

Temos muita área de floresta mal gerida, pouco intervencionada, mas o potencial existe, sem precisarmos de aumentar a área florestal. Alargando a boa gestão, poderíamos facilmente produzir o dobro do que produzimos. Há um envolvimento cada vez maior das indústrias (seja na fileira do eucalipto, na do pinheiro ou na do sobro), na tentativa de melhorarem os modelos de gestão. As indústrias não ganham nada em ter um povoamento mal gerido, a produzir 3 ou 4 m3 de madeira por hectare/ano, em vez de outro, bem gerido, que produza quatro ou cinco vez mais. Todos os estímulos são nesse sentido. Mas isto leva tempo. Porque há quase 800 ou 900 mil hectares de eucalipto, por exemplo, uma parte deles antigos, uma parte deles abandonados, uma parte deles que ninguém sabe de quem são, e a indústria não pode mandar nisso. Há coisas que estão para além da capacidade de intervenção das indústrias.

Mas numa floresta de produção, não há razão nenhuma para que a gestão dos povoamentos não seja feita numa perspetiva de conservação dos recursos naturais. A evolução da tecnologia e do conhecimento em torno da floresta permite produzir muitos metros cúbicos de eucalipto, de pinheiro, ou de outra coisa qualquer, sem com isso pormos em causa valores naturais ou recursos naturais. Não é que a função da indústria seja zelar pela natureza, que não é, a sua função é económica, mas cada vez mais é possível incorporar no modelo de gestão um conjunto de práticas que têm um retorno positivo do ponto de vista ambiental.

Qual o grande desafio da floresta nacional para as próximas décadas?

Os desafios são muito mais de caráter social e de gestão de território, do que propriamente económicos ou ambientais. Os económicos existem, mas a indústria trata de os resolver. Ambientalmente, as florestas, por definição, são bons contributos ambientais, tanto melhores quanto melhor forem geridas. O resto é que é um problema grande: fracionamento de propriedade, desconhecimento dos proprietários, abandono, conservação, quem zela, onde estão os recursos. Ogrande desafio é conseguir canalizar os recursos que a floresta necessita para fazer aquilo que tem de ser feito.